
Sua voz doce, suave cetim
mergulhos, tristezas, frustrações
sonhos de menina, desejos de mulher
mente adolescente, cansaço de mãe
Amor impossível entre pausas
eram suas canções.
IV
No Tratado das Grandezas do Ínfimo estava
escrito:
Poesia é quando a tarde está competente para
dálias.
É quando
Ao lado de um pardal o dia dorme antes.
Quando o homem faz sua primeira lagartixa.
É quando um trevo assume a noite
E um sapo engole as auroras.
(Manoel de Barros. O livro das ignorãças)
Castro Alves
"Crime! Pois será crime se a jibóia
Morde silvando a planta, que a esmagara?
Pois será crime se o jaguar nos dentes
Quebra do índio a pérfida taquara?
"E nós que somos, pois? Homens? — Loucura!
Família, leis e Deus lhes coube em sorte.
A família no lar, a lei no mundo...
E os anjos do Senhor depois da morte.
"Três leitos, que sucedem-se macios,
Onde rolam na santa ociosidade...
O pai o embala... a lei o acaricia...
O padre lhe abre a porta à eternidade.
"Sim! Nós somos reptis... Qu'importa a espécie?
— A lesma é vil, — o cascavel é bravo.
E vens falar de crimes ao cativo?
Então não sabes o que é ser escravo!...
"Ser escravo — é nascer no alcoice escuro
Dos seios infamados da vendida...
— Filho da perdição no berço impuro
Sem leite para a boca ressequida...
"É mais tarde, nas sombras do futuro,
Não descobrir estrela foragida...
É ver — viajante morto de cansaço —
A terra — sem amor!... sem Deus — o espaço!
"Ser escravo — é, dos homens repelido,
Ser também repelido pela fera;
Sendo dos dois irmãos pasto querido,
Que o tigre come e o homem dilacera...
— É do lodo no lodo sacudido
Ver que aqui ou além nada o espera,
Que em cada leito novo há mancha nova...
No berço... após no toro... após na cova!...
"Crime! Quem falou, pobre Maria,
Desta palavra estúpida?... Descansa!
Foram eles talvez?!... É zombaria...
Escarnecem de ti, pobre criança!
Pois não vês que morremos todo dia,
Debaixo do chicote, que não cansa?
Enquanto do assassino a fronte calma
Não revela um remorso de sua alma?
"Não! Tudo isto é mentira! O que é verdade
É que os infames tudo me roubaram...
Esperança, trabalho, liberdade
Entreguei-lhes em vão... não se fartaram.
Quiseram mais... Fatal voracidade!
Nos dentes meu amor espedaçaram...
Maria! Última estrela de minh'alma!
O que é feito de ti, virgem sem palma?
"Pomba — em teu ninho as serpes te morderam.
Folha — rolaste no paul sombrio.
Palmeira — as ventanias te romperam.
Corça — afogaram-te as caudais do rio.
Pobre flor — no teu cálice beberam,
Deixando-o depois triste e vazio...
— E tu, irmã! e mãe! e amante minha!
Queres que eu guarde a faca na bainha!
"Ó minha mãe! ó mártir africana,
Que morreste de dor no cativeiro!
Ai! sem quebrar aquela jura insana,
Que jurei no teu leito derradeiro,
No sangue desta raça ímpia, tirana
Teu filho vai vingar um povo inteiro!...
Vamos, Maria! Cumpra-se o destino...
Dize! dize-me o nome do assassino!..."
_________________
"Virgem das Dores,
Vem dar-me alento,
Neste momento
De agro sofrer!
Para ocultar-lhe
Busquei a morte...
Mas vence a sorte,
Deve assim ser.
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
"Pois que seja! Debalde pedi-te,
Ai! debalde a teus pés me rojei...
Porém antes escuta esta história...
Depois dela... O seu nome direi!"
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O que eu vou dizer, você nunca ouviu de mim
Pois minha timidez não me deixou falar por muito tempo
Para mim você é a luz que revela os poemas que fiz
Quem conhece da terra e do sol
Muito sabe os mistérios do mar
O que eu vou dizer, você nunca ouviu de mim
Pois quieto que sou só sabia sangrar, sangrar cantando
Quantas vezes eu quis me abrir
E beijar e abraçar com paixão
Mas as palavras que devia usar fugiam de mim
Recolhidas na minha prisão
O que eu vou dizer, você nunca ouviu de mim
Pois minha solidão foi não falar, mostrar vivendo.
Quantas vezes eu quis me abrir
e as portas do meu coração sempre pediam
Seu amor é meu sol
E sem ele eu não saberia vive
Milton Nascimento e Fernando Brant
Quando se fala de Deus, geralmente sua imagem está ligada à figura masculina. Atributos femininos, no entanto, podem ser encontrados na pessoa Dele. É o que afirma a Teologia Feminista, que se propõe a estudar a Bíblia do ponto de vista feminino e evitar que as pessoas enxerguem apenas as características masculinas de Deus.
Uma das preocupações dessa vertente da Teologia é a imagem do Criador e a presença dessa imagem em cada pessoa. Porque como Deus é interpretado como homem, o gênero masculino parece se sobrepor ao feminino. “Deus está acima da condição sexual. Ele é a causa de tudo, por isso, não é nem homem nem mulher e sim a junção dos dois”, disse a professora da cadeira de Teologia da Mulher da Escola Superior de Teologia (EST), Elaine Neuenfeldt.
A Teologia Feminista chama a atenção para o direito da mulher à expressão e realização. Isso deve acontecer não por mera concessão da parte do homem, mas pelo respeito para com a dignidade dela, representada por suas características peculiares (físicas e psicológicas), além de seus ideais, preferências e opiniões.
Segundo Elaine, que também é pastora da Igreja de Confissão Luterana em Porto Alegre (RS), a mulher sempre esteve presente nas passagens bíblicas, desenvolvendo um importante papel na história da salvação. Muitas foram protagonistas, como Sara, Rute, Débora e Ester, mas outras, apesar de anônimas, fizeram parte da vida dos apóstolos e foram decisivas para que o Evangelho fosse disseminado em todo o mundo.
ORIGENS DO FEMINISMO CRISTÃO
No fim do século passado, um grupo de mulheres cristãs norte-americanas, lideradas por Elizabeth Cady Staton, começou a se reunir periodicamente para estudar todas as passagens bíblicas onde havia referência à mulher. O objetivo era fazer uma releitura e interpretá-las à luz da nova consciência que a mulher tinha de si mesma.
Nesses encontros nasceu a Woman’s Bible (Bíblia da Mulher), editada em duas partes, respectivamente em 1895 e 1898, uma obra que abalou o mundo protestante americano. A realização desse vasto projeto de revisão e re-interpretação da Bíblia feita por mulheres foi o primeiro sinal marcante de um novo pensamento feminino, que amadureceu também no interior de comunidades cristãs.
A idealização da Bíblia da Mulher foi considerada como fato tanto cultural, como eclesial. Foi também um ponto de partida de um longo processo, que por volta dos anos 60 levou à elaboração do projeto de uma Teologia Feminista.
Outro momento importante aconteceu no período entre 1956 e 1965, quando as principais correntes do protestantismo decidiram admitir as mulheres no pastorado nos Estados Unidos. Esse fato representou uma grande novidade eclesiológica nestas comunidades, com exceção das igrejas livres americanas, que já praticavam a ordenação de mulheres desde 1853.
TEOLOGIA FEMINISTA x TOLOGIA DA MULHER
Teologia Feminista e Teologia da Mulher não são a mesma coisa. A primeira critica a segunda por causa de sua unilateralidade e de seu androcentrismo (pensamento centrado em si mesmo). Para Elaine, Teologia da Mulher perpetua estereótipos que a Teologia Feminista procura demolir. Por exemplo, uma “teologia da mulher” exigiria como contrapartida a elaboração de uma “teologia do homem”, ao passo que a feminista se auto-compreende como uma contribuição crítica para uma “teologia da integralidade”, que lida com os gêneros da mesma forma e importância.
Sendo assim, a Teologia Feminista é pela libertação das mulheres. É uma reflexão elaborada e praticada por elas e que busca tirá-las das sombras para colocá-las no mesmo patamar dos homens. “Pela primeira vez, concretamente, as mulheres se tornaram sujeito de sua própria experiência de fé, de sua formulação e da relativa reflexão, e por isso, aptas a construir teologia”, afirmou o pastor Edson Fernandes, da Igreja Cristã de Ipanema, zona sul do Rio de Janeiro, que também é professor do Seminário Teológico Batista do Sul do Brasil.
Através dessa nova forma de estudar a Bíblia, as mulheres são capazes de refletir sobre suas experiências humana e cristã, e olharem para si mesmas com um olhar crítico. Desse modo, a Teologia Feminista introduz no círculo hermenêutico (o círculo que liga a experiência do passado, utilizando textos bíblicos e a tradição à experiência atual da mulher) a participação feminina, enriquecendo a fé, a sua formulação e as suas expressões.
A Teologia Feminista não quer ser unilateral, mas deseja reagir com eficácia à falta de imparcialidade da teologia dominante e prática eclesial. Sobre esse equilíbrio entre homens e mulheres, o pastor Glauner Pereira, que é professor do Seminário Teológico Batista Gonçalense, ressaltou o seguinte: “Quando a Teologia Feminista se dispõe a ceder seu lugar a uma equilibrada, justa, saudável e romântica Teologia dos sexos ou dos gêneros, que não subtraia nada do valor e direitos da mulher, ela mostra-se sábia. Se, por outro lado, ela fizer questão de se manter como um corpo autônomo, tão insensível como a insensibilidade que veio questionar, prestará um desserviço à Igreja de Cristo. A Teologia Feminista surgiu como antídoto a um problema, devendo se guardar de torna-se, ela mesma, outro problema”.
Os teólogos consultados por Enfoque foram unânimes ao afirmar que qualquer perspectiva que pretenda propor-se como luta dos sexos não passa de uma ilusão e perigo. Desembocaria em situações de segregação e de competição entre homens e mulheres e promoveria um solipsismo, ou seja, um isolamento, que se nutre de uma falsa concepção de liberdade.
INTERPRETAÇÃO NÃO PARTIDÁRIA DA BÍBLIA
A Bíblia ensina a submissão da mulher ao homem, e durante muito tempo as igrejas interpretaram esse ensino como sendo desfavorável ao sexo feminino. Alguns estudiosos apontam que as Escrituras foram usadas como arma política contra a emancipação da mulher, para que ela fosse reprimida e renegada ao segundo plano.
Para a bispa Marisa Coutinho, da Igreja Metodista do Brasil, a atual imagem da mulher está contaminada pelo pecado. “No hebraico, a palavra idônea significa completa, inteira, ou seja, a mulher foi criada por Deus para andar ao lado do homem de forma completa”, disse, ressaltando que tanto homens quanto mulheres são iguais diante do Criador.
A hermenêutica bíblica feminista se propõe a mudar a má interpretação dos textos sagrados, além transformar o que os teólogos apontam como um problema cultural de poderes entre os sexos. Para isso, são usadas análises e temas de reflexão com uma linguagem e um imaginário elaborados na perspectiva da mulher. Dessa forma, são acionadas a sua capacidade de integração, seu senso de comunidade, sua proximidade com a natureza, servindo para superar distorções patriarcais e para reconstituir um elo de igualdade.
“Não existe nenhum texto bíblico em que Jesus impeça as mulheres de se aproximarem Dele. Ele se relaciona com elas e as inclui como co-participantes de seu ministério”, afirmou Elaine. A pastora também ressaltou que o parâmetro dos cristãos é Cristo e que, portanto, é necessário seguir essa prática para que a mulher seja livre para exercer o seu ministério sem preconceitos e fundamentalismos patriarcais.
Um exemplo prático disso é o uso da chamada Linguagem Inclusiva, que não usa o gênero masculino como universal. Antes, procura a designação geral que abranja o homem e a mulher. Por exemplo, ao invés de dizer “irmãos”, masculino plural, para aludir a ambos os sexos, usa-se “irmãos e irmãs”.
DEUS E O AMOR DE MÃE
Outra mudança é a constatação dos atributos “femininos” de Deus. Segundo Elaine, na Bíblia, o amor divino é comparado ao amor de mãe e não ao de pai. Em Lucas 15, versículo 8, Deus é representado como a mulher que varre a sua casa e encontra a dracma perdida. “A figura masculina de Deus está ligada à ordem e à lei, mas quando é necessário apontar seu amor, a imagem usada é a da mãe, que representa amor, carinho e acolhimento”, constatou o pastor Edson Fernandes.
Mulheres são protagonistas e co-participantes da proposta do reino de Deus. Ele criou homem e mulher para que juntos governassem a terra. A Teologia Feminista deve servir para mostrar que a mulher não é objeto em sua relação com o homem, mas comprovar que os dois são co-sujeitos dos projetos divinos.
CONTRIBUIÇÃO FEMININA NA BÍBLIA
Ariane Azeredo
Durante toda a Bíblia, diversas mulheres foram usadas por Deus para cumprir seus propósitos. Umas, santas e recatadas, como Maria (Mateus 1:18), mãe de Jesus, Izabel (Lucas 1:5), mãe de João Batista, e ainda Ana (I Samuel 1:2), mãe do profeta Samuel. Outras, excluídas da sociedade, como Raabe (Josué 2:1), a prostituta que ajudou os espias na terra de Jericó e que entrou na genealogia de Jesus, e Maria Madalena (Mateus 28:1), ex-prostituta, que foi, ao lado de outra mulher, a primeira pessoa a ver Cristo ressurreto.
Foto retirada de Reconstrucion.
*Hoje vou abrir uma execeção, vou postar um artigo sobre Bioética que estava procurando há muito tempo. O autor é do Moderador do Conselho Mundial de Igrejas Dr. Walter Altmann.
Ainda tenho muitas dúvidas e questionamentos sobre o tema. Publico este artigo como ponto de partida para um debate. Torço para que alguém leia, rsrs.
O CUIDADO PELA VIDA
I - Vida – uma visão cristã
1. A fé cristã entende a vida a partir da ação criadora de Deus. Sendo Ele o doador da vida, não é possível reduzi-la a uma propriedade privada. A vida é concessão, é presente, é dom de Deus. Porque criada e nutrida por Deus, a vida tem uma profundidade insondável. Esta profundidade misteriosa da vida não permite que ela seja transformada em coisa ou objeto que se possa manipular, vender ou comprar. O bem da vida é uma graça que recebemos, mas da qual não podemos dispor. Porque é indisponível, a vida não pode ser consumida irresponsavelmente nem pode ser descartada levianamente. A vida é um bem sagrado. O testemunho da Escritura aponta para esta sacralidade da vida e nos convida a assumirmos uma atitude de profundo respeito, pois Deus viu que o que criou era “bom”, “muito bom” (Gn 1.10, 12, 18, 21, 25, 31).
2. Contudo, a bondade da criação não reside no fato dela ser boa em si mesma. A bondade da criação repousa sobre o amor transbordante de Deus. Mesmo depois da queda, Deus continua amando sua criação e a tem sob o seu governo. A prova maior deste amor é o fato de Deus ter enviado o seu Filho Jesus Cristo para a salvação de todas as pessoas e para a redenção do universo.
3. O pecado é a real tragédia do ser humano e de toda a criação, que é marcada pela morte. O pecado rompeu definitivamente a relação entre Deus e o ser humano, entre o ser humano e os outros seres da criação e a relação dos seres humanos entre si. Cada qual se transforma no inimigo do seu semelhante. Contudo, Deus e o mundo não são inimigos. O mundo não é propriedade do diabo, mas permanece sendo a boa criação de Deus, ainda que profundamente marcada pelo pecado.
3.1. De fato, há uma fraternidade na tragédia e na esperança entre todos os seres vivos. Na tragédia, porque a criação como um todo sofre a realidade da morte, que também se mostra na destruição dos seres vivos (Rm 8.20, 22-23). Mas há também uma solidariedade na esperança, porque todos aguardam pela realização do Reino de Deus, que significa a superação da morte e do sofrimento (Rm 8.19, 21, 24-25).
3.2. Entretanto, isso não dispensa o cristão de assumir sua tarefa de ser um bom administrador, cuidando da boa criação de Deus (Gn 2.15). Somos chamados à responsabilidade, ou seja, devemos responder pelos nossos atos diante do Deus vivo e verdadeiro. Muitas pessoas cristãs ficam inquietas com as notícias de que a ciência já dispõe de instrumentos técnicos para viabilizar a clonagem de seres humanos. Isso assusta também a opinião pública e muitos cientistas.
3.3. A Igreja de Jesus Cristo tem o seu compromisso de afirmar a dignidade da vida humana. Falar isso somente é possível na medida em que afirmamos que a vida é um dom de Deus. A visão corrente na mídia - de que somente a qualidade de vida é critério para definir a dignidade da vida - parte do pressuposto de que a ausência de dor e de sofrimento é o critério maior para determinar a dignidade da vida humana. O prazer de viver é o imperativo categórico da sociedade de consumo e o sofrimento é considerado uma condição inaceitável.
4. Obviamente, não podemos deixar de reconhecer que os avanços científicos nos trouxeram benefícios maravilhosos. Hoje dificilmente alguém precisa morrer de tuberculose ou de lepra ou de outra doença infecto-contagiosa, se descoberta nos seus inícios. As mortes prematuras de crianças não são mais a regra, mas tristes exceções. Devemos isto, entre muitas outras conquistas científicas, aos conhecimentos acumulados pela biologia e pela medicina.
5. No entanto, entendemos que a ciência e seus avanços, como tudo o mais em nossa realidade, também vêm acompanhados de riscos e ameaças à própria vida e sua dignidade. Como em todos os âmbitos, tampouco a ciência poderia pretender estar imune à realidade do pecado. O cientista que faz uma nova descoberta não pode saber de antemão qual o uso que outras pessoas, instituições, empresas e governos farão dele. Freqüentemente a pesquisa e seus resultados são comandados pelo objetivo maior de maximizar lucros empresariais. O próprio conhecimento que pode curar pode também, em muitos casos, matar. A ciência que nos deu a energia elétrica ou mesmo a medicina nuclear também nos deu a bomba atômica. O uso de recursos modernos muitas vezes está também determinado por condições sociais e econômicas, dependendo, por exemplo, de que pode pagar por eles. Além disso, os aparelhos que salvam as pessoas da morte também nos colocam diante de decisões difíceis, como, por exemplo: quem decide se os aparelhos de um paciente na UTI devem ser desligados? Ou, inversamente, quais são os critérios de escolha quanto à pessoa enferma que será conectada a um determinado aparelho, se há mais quatro ou cinco pessoas à espera do mesmo aparelho salvador?
6. Hoje a ciência pode até mesmo alterar as informações genéticas que determinam a vida. Descoberto o caminho, há uma compulsão para trilhá-lo. É isso que se faz, por exemplo, ao produzir medicamentos e vacinas, alterando as informações genéticas de bactérias. A recombinação do código genético é uma ferramenta tecnológica extraordinária que pode modificar a vida humana e a dos demais seres da criação. Por meio da mudança genética, plantas podem ser modificadas para que cresçam mais rapidamente, para que produzam mais, para que sejam resistentes às pragas. O mesmo pode e está sendo aplicado aos animais, principalmente os que nos servem de alimento. Rompe-se, assim, com as limitações e as barreiras das diferenças que há entre as espécies. Os cruzamentos das espécies e dos reinos biológicos são hoje possíveis em laboratório. Benefícios advêm dessas descobertas. Mas quais são os riscos e malefícios? Quais os critérios para discernimento? Quais os instrumentos legais para coibir os abusos? Como direcionar os benefícios da pesquisa e da ciência para o conjunto da população? Enfim, como preservar a dignidade da vida?
7. Uma certa lógica comercial transformou os seres vivos e o próprio ser humano em objeto, cujo valor é regulado pela oferta e pela procura do mercado. O mercado aliado à ciência (e vice-versa) arroga-se o direito de agir como um deus. Entretanto, o mercado somente existe por causa dos recursos naturais. Sem os recursos naturais não há produtos para compra e venda.
8. No entanto, com freqüência o mercado nos ilude. Ele nos diz que não estamos comprando produtos que vieram de recursos naturais. Induz-nos a pensar que compramos algo que tem vida própria, e que nos oferece a promessa de realização, de felicidade. É precisamente esta idéia de que podemos comprar felicidade ao comprar bens de consumo que é profundamente predatória, destruidora do meio ambiente.
9. A ganância alimenta o nosso coração e o consumo engorda os nossos corpos. É necessário ver que a criação foi colocada por Deus para que ela fosse preservada e que fosse responsavelmente utilizada. A utilização dos recursos naturais deve garantir a vida desta e das futuras gerações para que também estas possam viver de forma digna. A possibilidade de manipulação genética vinculada à exploração comercial de seres vivos, por exemplo, sinaliza para uma relação perversa entre ciência, comércio e criação. Aquelas pessoas que deveriam ser as jardineiras, que cuidam do jardim de Deus, se transformaram em predadoras.
10. É necessário, portanto, despertar a consciência de que aquilo que funciona tecnologicamente e é útil para o mercado não é necessariamente justificável sob a perspectiva da ética cristã. Sem o conhecimento respeitoso da vida, os avanços científicos podem esconder um potencial maléfico muito grande. Os avanços científicos não se constituem em um problema meramente técnico, mas sim, antes de tudo, ético.
11. Assim, o enfoque ético deve ter primazia sobre a capacidade técnica de se realizar pesquisas científicas com as informações que determinam a vida. Temos permitido que a ciência, a tecnologia tome decisões em nosso lugar. Porém, os passos que a ciência quer dar não podem ser justificados ou legitimados pela própria ciência. Somente o julgamento ético dos seres humanos é que pode decidir os rumos da ciência.
IV - A redenção da vida: como a bioética pode nos ajudar?
12. Numa perspectiva teológica a vida tem uma dignidade inviolável, porque provém de Deus. Assim é necessário recuperar o temor diante da vida. Albert Schweitzer, importante teólogo protestante e médico, tinha a consciência de que todas as formas de vida devem ser vistas sob a perspectiva do temor respeitoso. Sob a ótica evangélica, a vida não é propriedade, como quer o mercado, nem objeto, como pode supor a ciência, mas é dádiva de Deus. Este deve ser o ponto de partida para um agir responsável.
13.A Escritura aponta para a nossa responsabilidade diante de Deus, da criação e do ser humano. É necessário garantir a existência da criação para as gerações futuras. Estamos geneticamente e historicamente ligados. Diante disso, a visão de que Deus ama o mundo na sua totalidade nos dá olhos que enxergam o mundo como o nosso próximo. Não somente o ser humano é nosso próximo, mas também os seres da criação o são. Nos relatos dos Evangelhos, Jesus Cristo, o Filho de Deus, é profundamente sensível para com os seres da criação e em especial para com os seres humanos.
14. A bioética prioriza a proteção da vida. Ela é uma disciplina acadêmica e um movimento da sociedade que propõe discutir as questões éticas em virtude dos avanços da ciência. A bioética não se preocupa somente com as questões médicas, mas com a sobrevivência do planeta e com o futuro da humanidade. Além destas preocupações, a bioética também aborda temas como a fome, a discriminação racial, o combate à violência e o combate à destruição do planeta. Para a igreja cristã, estes temas são muito pertinentes, pois a bioética, bem como a fé cristã, é favorável à vida, o bios. Ambos se preocupam com o agir correto e responsável diante da vida em todas as suas formas.
15. A bioética, a partir de uma visão cristã, entende que somos chamados a viver de modo fraterno com o ambiente que nos rodeia, cuidando da água, das florestas, da preservação do solo. Faz-se necessário afirmar, cada vez mais, que a dignidade do ser humano é um bem do qual a igreja, em sua proclamação e ação, não pode abrir mão. A dignidade da vida humana não é propriedade nem conquista, mas é dádiva de Deus. Diferente da visão utilitarista, o imperativo do momento é viver de modo grato e alegre, satisfeito com aquilo que temos. Inversamente, a ganância ilude-se ao pretender, falsamente, preencher o vazio da existência humana. A ganância também é um motor propulsor do desastre ambiental. Assim, para a bioética, o saber é colocado a serviço e para o resgate da dignidade do ser humano e do ambiente em que vive. Saber-nos acolhidos por Deus nos torna solidários com os seres que Deus colocou ao nosso lado para vivermos em comunhão respeitosa com eles.
- Há denúncias de pesquisas com seres humanos que causam prejuízos físicos e males emocionais nos países pobres. A ganância e as vaidades produzem cobaias humanas. Estas práticas atentam contra a dignidade humana. Há também denúncias de pessoas que foram abusadas em virtude de procedimentos médicos e hospitalares desrespeitosos e irresponsáveis. Neste rol, incluem-se aquelas pesquisas feitas sem garantias de benefícios físicos e sem o consentimento informado do paciente.
- A possibilidade de reprodução da vida em laboratório rompeu com a história da humanidade de que a procriação somente acontecia na união dos gametas masculino e feminino, por meio da união sexual entre um homem e uma mulher. Agora é possível fecundar o óvulo sem a presença do homem. Muito mais ainda, não há mais necessidade do espermatozóide, pois um óvulo pode ser fecundado por um outro óvulo.
- Não é raro ouvir depoimentos de pais que lançaram mão da reprodução medicamente assistida, dizendo que o objetivo seria a busca de uma certa perfeição física do filho ou a escolha do sexo da criança. Também houve o estranho episódio de um casal de surdos que, por encomenda, tiveram um filho surdo. A escolha desses pais pode ser idificada como busca por satisfazer os seus próprios caprichos. Rompe-se com a prerrogativa do casal de procriar, abrigando a criança na família como uma dádiva confiada ao seu cuidado, mas com dignidade própria. A noção de procriação é substituída pela prática da re-produção, como sendo um processo industrial.
- Muitas plantas e animais brasileiros foram patenteados por empresas de países desenvolvidos. O código genético de tribos indígenas brasileiras também foi patenteado por empresas estrangeiras. As empresas se transformam em proprietárias das linhagens genéticas de pessoas, animais e plantas. Essa é uma prática que se chama de biopirataria. Recentemente, o Brasil conseguiu reaver o direito de comercializar os produtos derivados do cupuaçu, que tinha sido patenteado pela Asahi Foods do Japão.
- Os estudiosos alertam que novas doenças estão sendo definidas ou exageradas por especialistas, muitas vezes financiados pelos próprios laboratórios. Os artigos acusam a indústria da venda de doenças - prática na qual se infla o mercado de uma droga convencendo as pessoas de que elas estão doentes e precisam de tratamento médico. Desse modo, necessidades são despertadas para satisfazer as exigências do mercado. Pior: doenças, que as pessoas não têm, são introjetadas nas suas consciências para alimentar um mercado bilionário. A ganância é uma força poderosa que move a indústria farmacológica.
Em id desses – e muitos outros – desafios nessa área, que podem e devem fazer as igrejas? Em primeiro lugar, cabe-lhes uma responsabilidade pastoral. Elas deverão acompanhar de maneira solidária as pessoas que porventura tenham sido vítimas de processos que violaram sua dignidade, visando o restabelecimento de sua integridade pessoal. Elas também deverão assistir as pessoas que estão defrontadas com situações que demandam sua decisão ética. Numa ética evangélica não lhe farão simplesmente prescrições de como decidir, mas darão orientação e critérios que auxiliem as pessoas no processo de sua própria tomada de decisão, uma orientação centrada no valor da vida como dádiva de Deus e no caráter inviolável de sua dignidade.
Em segundo lugar, as igrejas deverão informar-se constantemente acerca dos avanços científicos, suas possibilidades e implicações, seus benefícios, mas também seus riscos e, mesmo, suas perversões. O bom conhecimento do assunto é pré-requisito para a formação de juízos e para a proposta de alternativas práticas. As igrejas também procurarão disseminar esse conhecimento e a reflexão teológica acerca dele entre seus membros e comunidades. Também cabe às igrejas promover espaços para que se discutam estas questões com os profissionais da saúde, com políticos e pessoas interessadas. Mais e mais hospitais, por exemplo, estão incluindo nas suas comissões éticas também alguém com formação teológica ou responsável pela capelania hospitalar.
A partir desse conhecimento e desse processo de reflexão as igrejas também farão manifestações na esfera pública, posicionando-se em relação a propostas de ordenamento legal da pesquisa e dos avanços científicos, no que afeta a dignidade da vida, bem como em relação a políticas públicas que visam tornar acessível a toda a população as conquistas científicas. Decisões políticas, baseadas na ética, são essenciais para democratizar o acesso aos benefícios da ciência e coibir os abusos que discriminam contingentes populacionais ou violam a dignidade da vida.
Por fim, há que reconhecer que o alcance das ações das igrejas pode ser limitado – ainda assim, significativo – num processo em curso com sua própria dinâmica e também com poderosos interesses envolvidos. Contudo, há uma crescente consciência na sociedade e entre as nações da necessidade da reflexão ética no que concerne à dignidade da vida. E as igrejas devem estar dispostas a contribuir. Por isso, as igrejas, em todos os níveis, desde o local e comunitário até o global e político, devem acrescentar sua voz, junto às da sociedade civil e de todas as instâncias interessadas e envolvidas, no processo de fortalecimento da bioética.
Porto Alegre, 30 de abril de 2008.
Walter Altmann
Pastor Presidente
http://www.luteranos.com.br/articles/9940/1/Posicionamento-da-IECLB-sobre-bioetica/1.html